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Saturday, March 06, 2004

Do cerco à coligação

Do cerco à coligação
Janeiro de 1975. O I Congresso do CDS pára para almoço. Os congressistas e dirigentes regressam ao Palácio de Cristal para mais votações. Mas não chegam a ir jantar, nem Freitas do Amaral termina o discurso. Dezenas de milhares de militantes e simpatizantes de extrema-esquerda barricam novos e velhos até às sete horas da manhã. Cocktails Molotov, chuva de pedras e tiros ouviam-se do exterior. Os congressistas do primeiro conclave centrista pediram auxílio a Deus, ao Presidente da República, ao Governo, ao Exército e à polícia. Os convidados, estrangeiros, telefonaram incessantemente para as embaixadas e respectivos países. Um forte motivo de pressão que levou o Presidente da República, o general Costa Gomes, a intervir e a evitar "uma mortandade", palavras de quem estava do lado de fora e pressentiu a tragédia, caso os manifestantes tivessem tentado entrar.

Caetano Cunha Reis tinha dezassete anos na altura. Era o mais novo fundador do CDS e, por isso, foi o primeiro presidente da Juventude Centrista. A "O Primeiro de Janeiro" recordou os tempos em que era um "tira-linhas" e que dentro do pavilhão do Palácio de Cristal, no Porto, se viveram momentos de "medo". "Não senti pânico à minha volta. Mas medo. Ninguém sabia como aquilo ia acabar". A revolta estava no ar, mas Caetano Cunha Reis lembra que sentiu revolta também. "Estávamos revoltados porque eram os tempos em que acreditámos que era chegado o momento de viver um modelo de democracia ocidental normal. E o que se vivia, na altura, era uma mudança de 180 graus: de um regime totalitário de direita passámos para um regime totalitário de esquerda".

Da parte da manhã, as sessões decorreram normalmente. Ainda estavam os movimentos de extrema-esquerda a organizarem as manifestações, e no Palácio decorria o I Congresso do recém-criado CDS, onde se pretendia realizar as primeiras eleições formais, já que todos os cargos eram ainda provisórios, com a aprovação das moções, a ratificação do programa e a eleição dos órgãos dirigentes. Não chegaram a acontecer.

Depois do almoço, os congressistas regressaram e, com eles, começaram a surgir "zunzuns de que, de facto, algo ia acontecer, à medida que os manifestantes convergiram para o Palácio". Diogo Freitas do Amaral, presidente do partido, começou a discursar. Não chegou a terminar.

Gritos de ordem, os portões a bater, pedras a voar, tiros e cocktails Molotov no exterior do Palácio. Lá dentro começaram os telefonemas, os pedidos de auxílio.

O momento que se viveu foi de confusão. Caetano Cunha Reis era novo, portanto ficou na parte de baixo do edifício. Os mais velhos e as mulheres foram levados para o primeiro piso. O centrista, hoje, brinca com a situação. Mas é descontração à distância, porque, na altura, como o próprio confessa, o CDS sentia-se indefeso, com a polícia a não garantir a segurança. "Era uma instituição muito complexada, conotada com o antigo regime e aquela tendência para o "não me comprometas"". Aliás, para lá dos portões do palácio, o jornalista Jorge Massada, que pertencia à Organização Comunista Marxista Leninista Português (OCMLP), recorda que a GNR foi a força que mais interveio e carregou nos manifestantes para os dispersar.

Uma semana antes do Congresso já se antecipava que a esquerda não daria tréguas e o CDS tinha planos de defesa onde contava com a polícia. "Aos primeiros telefonemas que fizemos para as forças de segurança, disseram-nos logo que não conseguiam controlar a manifestação", revive o jovem centrista que, "com sangue na guelra", rememora tempos onde se conspirava no primeiro piso do Palácio.

Chegadas as 22 horas, Diogo Freitas do Amaral "estava calmo", enquanto Adelino Amaro da Costa demonstrava alguma ansiedade. "Ninguém nos garantia segurança e quando nos garantiam não era para levar a sério, dados os tempos revolucionários que se viviam". Até que, depois do Governo demonstrar falta de força para controlar a situação, o general Costa Gomes garante aos dirigentes do partido confinado ao Palácio que uma força de intervenção iria ser mandada para o Porto. Uma companhia de paraquedistas chegou a D. Manuel II cerca das seis horas da madrugada. Já a manifestação tinha perdido a sua força, batida pelo cansaço, e não pela polícia ou pela tropa que se dispersava no terreno. "Foi preciso, ainda, que todos percebessem que se ocorresse uma tragédia, seria mau para todos, sobretudo para a própria esquerda. E quando essa sensilização aconteceu, o COPCON chegou a ser pensado como a única força que teria capacidade para intervir. O que não chegou a acontecer. "Quando o comandante da companhia de paraquedistas do Montijo entrou no Palácio, percebemos que dali a pouco poderíamos começar a pensar sair"...

Era Portugal, há 29 anos. Cocktails Molotovs invadiam os jardins do Palácio de Cristal e "Morte ao fascismo" era entoado na rua por dezenas de milhares de pessoas. Mas o Congresso não terminou. Às sete da manhã os delegados abandonaram o espaço e no Domingo não voltaram a reunir. O conclave foi realizado semanas mais tarde na sede oficial do partido, onde hoje é o Governo Civil do Porto, no Palácio dos Pestanas.

Neste ano de comemorações oficiais, o CDS quer voltar ao sítio onde foi feliz... e recordar essa reunião clandestina, pá...!




Este texto, com algumas alterações, foi publicado na edição de domingo de «O Primeiro de Janeiro»

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