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Thursday, January 15, 2004

Lenda de Guerreiro

Há homens que são apanhados nas esquinas da história. Na dobra dos tempos. Apanhados por factores que não controlam, que não compreendem. Apanhados por mudanças inesperadas. De alguma forma, todos já passamos por isso. Por situações que não controlamos – de repetente o «tapete» que tínhamos debaixo dos pés foge sem razão. Dúvido, no entanto, que algum de nós tenha sido apanhado assim nas dobras da História com a força impediosa com que a mudança atingiu Marcelino da Mata, o tenente-coronel do Exército português, de origem guineense que lutou na guerra do Ultramar durante 14 anos, sem parar, e que chegou à metrópole numa maca. Marcelino, o guerreiro mais medalhado do exército português. Um homem que, acima de tudo, se considerava português. Um herói nacional, condecorado sem fim pelo Estado Novo. Um dia passou de herói a traidor. Traidor a uma pátria que tinha mudado de rumo sem o avisar. Marcelino é agora um homem que se senta no banco do tribunal da Boa Hora para testemunhar no caso da Moderna. Um homem que se viu compelido, 30 anos depois das medalhas, a fazer segurança para uma empresa privada. Um herói nacional, caído em desgraça, por um regime que lhe trocou as voltas, na esquina da história. Conta Freire Antunes que Marcelino da Mata fazia "denodadamente a guerra partindo da noção de que quem tinha medo morria depressa. O (então) Alferes Marcelino da Mata, um supermedalhado do Exército, detentor da Torre e Espada, comandou grupos especiais (de autóctones da Guiné) em múltiplas acções de combate e destaca o esforço desses homens que se sentiam portugueses. Foi um dos expedicionários a Conakry. Veio para Lisboa numa maca". Está agora na Boa Hora, a testemunhar no caso da Moderna, negando envolvimento na tomada da Dinensino e garantindo que apenas vigiava a empresa de segurança que operava na universidade. Marcelino da Mata é o homem capturado nas dobras do tempo e na esquina da história. Atingido pelos alcatruzes da nora. Sem dó, nem piedade.

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