Não se pode matar gajas destas, não?
Consultório médico na Boavista, hoje de manhã. Uma senhora entra no consultório e espera de pé junto ao balcão. De saia de malha e casaco igual, falta-lhe uma gabardina para a proteger da chuva. Veio a pé de longe. Está preocupada com o marido. Fez um exame médico naquele consultório e está ansioso pelos resultados. A espera potencia os piores medos, os maiores receios. A vaca da secretária diz friamente que não pode revelar nada.
- "Tem de ser o senhor doutor. Quando o doutor Mário puder falar consigo, fala".
- "Será que posso falar com ele por telefone? Ou então eu espero aqui..."
- "Não vale a pena esperar. Está no meio de um exame"
- "Mas o meu marido está tão ansioso... Desconfia até que eu já sei os resultados mas não lhe digo. E agora, se não conseguir falar com o senhor doutor, o que faço?"
- "O senhor doutor vai de férias duas semanas. Quando ele voltar"
A senhora, perto dos 60 anos, manteve sempre a calma. Não agarrou a gaja pelos cabelos, nem sequer levantou a voz.
- "Mas posso ligar à tarde?"
- "Pode tentar, mas não prometo nada".
Não é uma questão da puta da secretária ter ou não ter coração. Não é revelante. Relevante, para mim, é saber que outras pessoas morrem, quando ela continua a respirar. E pensar que os meus impostos lhe pagam idas ao hospital... Dá arrepios...
Cinco minutos depois, o telefone xpto do consultório toca eufórico.
- "Estou? D. Emília? Quer falar com o senhor doutor? Agora não pode ser.
Mas ligue às duas, logo a seguir ao almoço, que eu passo-lhe a chamada para a senhora saber como está o seu exame".
Isto resolvia-se facilmente. E quem o fizesse (posso candidatar-me?) receberia uma medalhita. Caçadeira em punho, primeiro atirava à rótula esquerda... depois à direita... Ok, ok, eu acordo. Já sei que não posso matar a puta da secretária. Mas será que posso assistir quando ela passar pelo mesmo? Porque mais cedo ou mais tarde, tudo se paga, tudo se recebe de volta. E o pior é receber em dose reforçada.
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