O bom selvagem
Depois do «Chuva de Estrelas», vieram outros. E eles cantam e encantam em
palco. Vendem cd's, deixam de estudar, nunca quiseram trabalhar. Tal como
os modelos, pensam em aparecer nas revistas cor-de-rosa e ficar com
de bronze depois de muito solário.
Quando me passeio pelo controlo remoto vejo meninos e meninas auto-suficientes. "Temos talento e prontos". Quem sou eu para contestar. Não teriam entrado na prova de admissão do Conservatório. Mas isso não interessa. O juri, que fez o Conservatório, já se vendeu.
A ideia de que admiramos algo que não somos capazes de fazer não funciona
com estes meninos e meninas. Para eles basta acreditar, ter fé, perseguir um
sonho. Mesmo que se seja mudo. A noção básica, clássica, de talento e arte
maior, para eles não passa de palavras que algum professor maldoso proferiu tentando propositadamente traumatizá-los.
Directamente da teoria do bom selvagem, qualquer um pode cantar e encantar. Eles acreditam piamente que são autênticos, talentosos, verdadeiros artistas. E acreditam piamente que nós os devemos ouvir, apoiar,
babar... Acreditam piamente que todos devem ter a sua oportunidade. A teoria - que não é de Rousseau - de que a vida não é justa, não cabe nestas
cabecinhas que nasceram já as maquinas de escrever pertenciam ao museu
mais próximo, fechado ao fim-de-semana de preferência. eles acreditam que se forem sinceros, honestos, genuínos, tudo lhes é permitido. O céu é o limite.
Sabendo ou não cantar. Essa parte não é relevante. Proque eles são boas
pessoas. E isso basta.
Meus meninos e meninas, NÃO BASTA. É pouco. É preciso mais. É preciso,
de facto, saber e cantar bem. É de facto preciso saber interpretar. Treinar,
estudar, sete, oito horas por dia. A genuinidade não é suficente. A sinceridade
também não. O coração aberto não serve.
Foram enganados. Esse é o problema. Prometeram o que ninguém lhes
poderia dar. E acreditaram. Jã não estão a tempo de voltar atrás. SErão
frustados a vida toda. A culpa será daquele jurado, daquela produtora, daquela apresentadora. Nunca deles. Porque ninguém lhes disse que era preciso saber cantar. Que era um requisito fundamental. Ninguém lhes disse. E eles também não discorreram. Tal como a teoria do bom selvagem, acreditam que a cendelha divina é o bastante. Não é.
Um dia, frustrados, alcoolizados, sem nunca terem contribuido para a
Segurança Social, vão perceber. Será tarde. Sozinhos e acocorados com o
frio, acham-se no direito de não trabalhar na caixa de supermercado mais
próxima. Mas não têm esse direito. Será tarde quando se aperceberem. Tarde
de mais.
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